“Santos da Baixada” é o título da exposição dos fotógrafos Luzo Reis e Antônio Siqueira, contemplada no Projeto “Circula MT” da Secretaria de Estado de Cultura. A exposição será apresentada em Rosário Oeste e Chapada dos Guimarães em praça pública e em Cuiabá no Museu de Arte e de Cultura Popular (MACP) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Compreende-se por Baixada Cuiabana, todo o percurso do rio Cuiabá e seus afluentes. O rio Cuiabá nasce no alto da Serra Azul, em Rosário Oeste, logo recebe a contribuição do rio Nobres, na margem direita, e avoluma-se ainda mais com a junção do rio Manso, na margem esquerda. A bacia do rio Cuiabá abrange 14 municípios, dos quais os nossos fotógrafos visitaram 9. A área inclui zonas de proteção ambiental, a exemplo do Parque Nacional do Pantanal mato-grossense, localizado na sua foz e o Parque Nacional de Chapada dos Guimarães na parte setentrional.
Inventada na primeira metade do século XIX, a fotografia é uma arte contribuidora, também, da cultura mato-grossense. Em meados desse mesmo século, fotógrafos já estavam inseridos nas expedições e já documentavam este universo remoto de dentro. A exuberância da paisagística, da flora, da fauna e da hidrografia, verificada nos nossos três ecosistemas, Amazônia, Cerrado e Pantanal, muito motivam os fotógrafos por aqui.
Luzo Reis (Cuiabá, 1987) e Antônio Siqueira (Cuiabá, 1967), se entrosaram muito bem na tarefa de enfocar o universo da cultura popular da nossa Baixada Cuiabana, onde as águas formadoras da Bacia do rio Cuiabá são também águas formadoras da base persistente da fé. A valorização do homem local, aquele velho braço de resistência, aquelas mãos enrugadas que puxam as rezas e conduzem o santo, cuja a fé, seja talvez, a grande motivação de estarem ali, integrados e tão íntegros. Nessas manifestações, o sincretismo religioso acontece com sincera naturalidade expressiva entre o sagrado e o profano. Ora, a ritualística do acontecer é plena porque a todos envolve. Em ambos as fotografias nos comprovam que a fé é a resistência da velhice e da memória, professora ancestral da tradição.
Os trabalhos mostram um luxo caboclo e requinte no vestuário, a beleza singela das decorações internas, limpeza e suavidade. A expressão estampada nas feições, insinuam rugas de devoção. As mantas de carne de boi estendidas nos varais garantem o churrasco. Antes era o peixe o prato preferido nas festas, já que são povoados ribeirinhos, hoje é a carne do boi que já está nos pastos e os rios já não são tão limpos e nem tão piscosos.
Photo é luz; a fotografia, portanto, é a gravação ou o registro da luz. Assunto que os nossos fotógrafos sabem bem captar são os mistérios da luz, sob patas de cavalos, entre nichos, sombras recônditas e altares que são como palcos de um teatro que promovem a devoção. Em Luzo, um movimento barroco capturado pela luz, dá uma densidade dramática nos jogos, nas danças, procissões, nos violeiros. Já Siqueira enfoca ambientes externos e internos em que paredes e mobiliários mostram um certo sentido concreto, cujo o geometrismo dos cantos vai no âmago da cultura popular. Aliás, vejo neste projeto uma somatória de encontros, de primos, Luzo Reis e Antônio Siqueira, ambos apresentados pelo mesmo mestre inspirador, o fotógrafo José Medeiros.
Vale! Vale muito mostrar em praça pública e dentro de um Museu de Arte, uma exposição fotográfica a registrar uma verdade da nossa cultura popular, que existe e por isso mesmo, precisa continuar a existir. Para tanto, esses rapazes fizeram um bom serviço. O projeto reconhece e valoriza o meio circundante, cujo registro é o estímulo da continuidade do ato e do fato de festejar. Inclusive, o envolvimento de crianças testemunham e respaldam a tradição.
OS ENCONTROS
O projeto Santos da Baixada lança olhares para as tradicionais festas de santo dos municípios da Baixada Cuiabana. A partir de uma pesquisa fotográfica que teve início em 2014 e ocorreu até 2019, o projeto percorreu 9 municípios da Baixada Cuiabana registrando um total de 19 festas. A ideia surgiu a partir de um encontro que tive com o fotógrafo Antônio Siqueira durante um curso de fotografia documental oferecido pelo renomado fotógrafo José Medeiros. O curso foi realizado no município de Rosário Oeste, localizado a 100km da capital Cuiabá e reuniu cerca de 10 fotógrafos. Na ocasião, logo fui apresentado à Siqueira pelo professor. Lembro que Medeiros me disse: “Luzo, não conhece Antônio Siqueira!? Uma lenda da fotografia de Mato Grosso!”. Antônio, com seu jeito simples e de câmera em punho respondeu: “claro que conhece, a gente é primo!”. Qual foi minha surpresa em descobrir que aquele primo distante, que eu não encontrava há anos e do qual eu tinha apenas uma vaga recordação de sua fisionomia na memória, era fotógrafo dos bons havia mais de duas décadas!
A partir daquele encontro retornei diversas vezes a Rosário Oeste a convite de Antônio para fotografarmos juntos festas de santo. Antônio é personalidade já conhecida por todos na cidade. Desde a década de 1990, ainda com câmeras analógicas, ele registra não apenas as festas de santo, mas todo o cotidiano da pacata cidade do interior mato-grossense. Com um acervo gigantesco de imagens da cidade e de sua gente, Antônio é um daqueles fotógrafos de antigamente que acompanha e cria imagens do cotidiano da sua comunidade com a paixão de quem vê na humildade, na deferência e nos trejeitos despojados de seu povo atributos de uma vida virtuosa que alia trabalho duro com momentos de partilha, fé e alegria. Não é com nenhum demérito, nem nostalgia, que observo esse anacronismo em Antônio. Em uma época de velocidade, em que somos constantemente demandados pela correria da cidade grande e da internet, encontrar tempo é nosso maior desafio. Nesse sentido, Siqueira é um privilegiado por poder se dedicar há tanto tempo a esse projeto de observar e criar imagens da sua cidade e de seu tempo. Lembro do próprio Zé Medeiros na ocasião me dizer: “Antônio mora no paraíso! É aqui que as coisas acontecem!”.
De fato, desde o curso e das idas posteriores a Rosário fiquei deslumbrado com tudo o que vi. Mesmo sendo cuiabano e vindo de uma família de forte tradição rural, há muito vivia a vida de citadino da capital. As festas que meus avós organizavam na fazenda, as rezas em homenagem a São Miguel estavam lá no fundo da memória, mas a rotina de estudos, de trabalho, os afastamentos que a modernidade promovem não apenas em mim, mas nos homens da cidade, as transformaram em relíquia. Acho que está aí a diferença entre a minha fotografia e a de meu primo. Enquanto para mim todo esse universo, todo esse tempo ritual de memória viva que essas festas promovem possuem um encantamento exótico, para meu primo elas compõe o ritmo de sua existência. Fico pensando sempre em como esse trabalho fotográfico revela essas temporalidades distintas. Creio que foi a curiosidade que foi crescendo em mim de encontrar esse mundo novo, tão próximo e ao mesmo tempo distante, que impulsionou a proposta que fiz a meu primo para transformarmos as festas de santo em objeto de pesquisa. Nossa ideia era viajar em busca desse tempo, tão presente ainda hoje nas cidades de nossa baixada.
Nossa escolha prioritária foi pelos festejos menores, aqueles classificados pelo escritor Roberto Loureiro (2006) como festas de santo rurais e de família. Tratam-se de festas em homenagem aos santos de devoção das famílias que possuem longa tradição na cultura dessas cidades. Uma das principais características desses festejos é que a sua realização não segue, na grande maioria das vezes, os ritos canônicos da igreja católica, apesar de receberem seu apoio. Em geral, elas datam de muitos anos e surgiram de promessas feitas aos santos católicos como forma de agradecimento a bençãos recebidas, normalmente relacionadas à saúde de entes queridos. Reflexos de um tempo onde a fé era o único recurso contra males que a ciência desconhecia ou simplesmente não alcançava nos rincões do país. Desse modo, os agraciados pagam suas promessas realizando anualmente uma grande festa na qual convidam sua comunidade para rezar e celebrar a dádiva alcançada. Mesmo passado muito tempo, essas festas persistem. Algumas, como a festa de São Sebastião da família do Seu Arquimedes (Seu Médinho), em Barão de Melgaço, foram herdadas pelas novas gerações que mantém a tradição. Segundo os relatos dos familiares, a festa já possui mais de um século e foi prometida em virtude de uma “mortandade” de animais e pessoas da fazenda. Alcançada a benção, acredita-se que a festa deve ser realizada anualmente sem falha, sob risco de que alguma “desgraça” aconteça. Como no ano em que a festa não ocorreu e uma briga de touros destruiu a capela onde ficava a imagem do santo. Outra característica importante dessas festas é que elas são um espaço de encontro, festa e partilha. Em sua grande maioria as refeições são ofertadas gratuitamente a quem aparecer, os preparativos feitos a muitas mãos por festeiros que se dedicam por dias no arranjo de comidas, construção de empalizados ou enfeites da casa do anfitrião para realização dos bailes e do altar, entre outros arranjos. Nos dias das festas são os cururueiros e os puxadores de reza (também conhecidos como capelães) que dão o tom solene. Em outros momentos, acontecem os bailes, leilões e outras atividades profanas que tornam esses festejos locais de muita diversão para todos que participam. É também essa mistura de momentos que tornam as festas de santo ricas e que talvez expliquem sua longevidade. Naturalmente que muitas coisas mudaram e nosso projeto não tem a pretensão de mapear todas essas mudanças. Tampouco de realizar um registro exaustivo de todos os festejos e de todas as suas etapas. Tal missão nos seria impossível. Em nossa pequena amostra, mais do que registrar a atualidade dos festejos de santo, procuramos criar uma imagem desse tempo ritualizado que, para aqueles que são da cidade grande como eu, parece tão distante ou tão longe dessa Cuiabá cosmopolita que nossa cidade tem se tornado. Não se trata tampouco de promover uma imagem nostálgica, mas de apresentar que esse ritmo e essa vida continuam pulsando forte e constituem parte importante de nossa cultura.
LUZO REIS
1987. Natural de Cuiabá. Fotógrafo desde 2013 tendo trabalhado principalmente em projetos de documentação e coberturas jornalísticas de eventos culturais para a Universidade Federal de Mato Grosso e outros. É Produtor Cultural da Universidade Federal de Mato Grosso. Alguns trabalhos podem ser vistos no portfólio disponível em luzoreisfotografia.com. Desde o início de sua carreira teve diversas fotografias publicadas na imprensa mato-grossense, sobretudo aquelas referentes à programação cultural UFMT.
2014: Tem fotografias selecionadas para a exposição coletiva Utopias Possíveis – Concurso Nacional de Fotografia (ECO/UFRJ)
2014-2015: Fotografa a produção cultural das etnias indígenas Bakairi, Umutina e Chiquitanos para o projeto Territórios Criativos Indígenas
2015: Participa da Exposição Coletiva “Olhar Essencial: Imagem, sentimento e reflexão sobre a água” – SEBRAE/MT
2015: Participa de exposição coletiva e recebe Prêmio de melhor fotografia na categoria profissional do concurso “Olhar Cuiabá” com a foto “Dona Dirce” – Prefeitura Municipal de Cuiabá-MT
2015 – 2019: Integra o projeto Santos da Baixada de documentação de festas de santo da Baixada Cuiabana em parceria com Antônio Siqueira
2016: Fotografia pré-selecionada no festival Paraty Em foco, Paraty-RJ
2018: Fotografa 7 comunidades Quilombolas mato-grossenses para o projeto e o catálogo Afro-Paladares – SEC/MT de autoria da produtora cultural Jackeline Silva
ANTÔNIO SIQUEIRA
1967. Natural de Cuiabá. Residente em Rosário Oeste desde os primeiros anos de vida. Fotógrafo autodidata desde os anos 1990, sua obra se concentra na vida da cidade de Rosário Oeste, em torno de temas como a vida ribeirinha, as festas de santo e as pessoas de sua cidade. Atualmente é colaborador no projeto de pesquisa Carto(grafia) Cultural dos municípios pertencentes a região metropolitana do Vale do Rio Cuiabá.
2001: 3º Salão mato-grossense de Fotografia, Centro de Eventos do Pantanal, Cuiabá-MT
2002: Publicação da fotografia “Morena da Janela” na revista Fotografe Melhor (Ano 7, nº74, p.19)
2003: Mostra “Rosário Oeste – Um patrimônio de Tradição e Cultura” – Secretaria Estadual de Cultura, Cuiabá-MT
2003: Idealizou o projeto de confecção de cartões postais dos principais pontos turísticos de Rosário Oeste e Diamantino-MT, para divulgação do potencial turístico
destes municípios
2003: Exposição individual “Rosário Oeste” – Casa de Cultura Maria Néri Baptista Ribeiro, Rosário Oeste-MT
2004: Publicação de fotos no material de divulgação da 9ª Festa Internacional do Pantanal – Rosário Oeste-MT
2004: Prêmio de Participação no XXII Salão Jovem Arte mato-grossense
2004: I Mostra do Patrimônio Histórico e Cultural e Monumentos de Cuiabá, Central Foto Digital, Cuiabá-MT
2015-2019: Integra o projeto Santos da Baixada de documentação de festas de santo da Baixada Cuiabana em parceria com Luzo Reis
DIÁRIO DE BORDO
Festa de São Benedito - Nossa Sª do Livramento
Nossa Senhora do Livramento fica a meio caminho entre Cuiabá e Poconé. É uma cidade cheia de tradição, onde a cultura pantaneira com forte presença negra se faz presente. No dia 30 de abril fomos conhecer a afamada dança do congo que encerra anualmente a festa de São Benedito da família dos irmãos Quirino e Odália Sarat.
Segundo Antonio (Toti), atual rei do congo, a dança veio para Livramento do Quilombo de Mata Cavalo. Durante um período sendo realizada pelo seu pai no bairro da manga em Várzea Grande, a festa retornou à Livramento em 1979 e desde então ocorre anualmente. Toti já é Rei do Congo há 20 anos e apesar de seus 4 AVC’s e 3 infartos – o último ocorrido há menos de 1 mês – O Rei do Congo garante estar firme e forte.
Festa de São Sebastião - Comunidade Mutum, Mimoso-MT
Enfim chegamos a Mimoso! Distrito do município de Barão de Melgaço em Mato Grosso para conhecer no dia 19 de Janeiro a festa de São Sebastião da comunidade Mutum. Quem nos recebeu foi o festeiro Arquimedes (Seu “Médinho, como é conhecido) juntamente com os primos Nézio e Firmino. Fomos ao local levados pela informação de que a festa era uma das mais antigas da região, com uma história de mais de 150 anos.
Realmente foi a festa estava muito boa, com o tradicional Cururu, reza, mta comida e bebida, levantamento do mastro e baile! Interessados na origem da festa fomos conversar com as festeiras primas do Seu Médinho. Segundo os relatos, a festa surgiu de uma promessa à São Sebastião para o fim da mortandade que estava assolando pessoas e animais de uma Usina administrada pelos ancestrais da família nos idos do século XIX.
Para cumprir a promessa o patriarca da família na época foi ao Rio de Janeiro buscar a imagem de São Sebastião e construiu nas terras da família uma capela, além de iniciar a festa anual todo dia 20 de janeiro, dia do santo. Como em toda festa de Santo, há sempre uma história ruim relacionada a quebra da promessa. No caso da comunidade Mutum, as nossas entrevistadas disseram que houve um tempo em que a festa não foi realizada e que em virtude disso, uma briga de touros adentrou a capela destruindo todo o local, restando apenas a imagem de São Benedito.
Seu Dorival, um dos churrasqueiros do festejo disse também que um ano houve atraso de uma semana da festa, o que provocou a morte de uma pessoa da comunidade. Dorival advertiu, profético: “mesmo com morte a festa tem que acontecer, se não fizer vai morrer mais gente e quanto mais atrasa, mais gente morre!”.
A festa é realmente grande, começa no dia 19 e vai até o dia 23 de Janeiro com programação variada e um público médio de mais de 3 mil pessoas que consomem 14 cabeças de gado durante toda a festa.